Quem tirou Lula da prisão não foi o arrojo de um Rui Barbosa do milênio. Nem uma tese jurídica formidável, um recurso processual inovador. As revelações da Vaza Jato, a mudança de conjuntura, a confirmação dos abusos da Lava Jato, a volatilidade magistocrática, a repugnância crescente de Moro e Dallagnol, reduzidos a bolsonaristas de esquina, fizeram sua parte. Foi mobilização que desnudou o descalabro lava-jatista, não o engenho de um advogado.
Mas o mito da sagacidade jurídica de um advogado, junto com o mito de seu compromisso com a causa, que não se sabe qual seria, levou a esfera pública a dar como certa a indicação do criminalista de Lula ao STF. Serviria como espécie de seguro contra novo surto salvacionista que derrube o governo.
Certa militância partidária está firme nessa patrulha do cala a boca. “Lula tem direito de decidir”, “o povo o legitimou para fazer suas escolhas”.
O argumento servil e clubístico confunde “ter poder jurídico” com “exercer esse poder sem justificativa republicana”. Parece o humorista preguiçoso que, diante da crítica pela piada que faz sofrer os que a sociedade brasileira já se encarrega de oprimir, afirma ter liberdade de expressão. O direito brasileiro pode até dar liberdade para a piada de mau gosto, mas o humorista nunca esteve livre da interpelação.
Uma Presidência democrática tem responsabilidade de responder ao escrutínio público por meio do argumento e da decisão. Cada cargo tem seus ônus. Lula tem direito de errar, mas não imunidade a crítica pelo erro grosseiro. Afinal, a legitimação eleitoral nunca significou cheque em branco. Voto não é delegação incondicional nem aclamação.
Para quem afirma que Lula não pode correr riscos, um aviso: nenhum democrata na história universal da democracia pôde prever o que juiz indicado a tribunal decidiria no futuro. Chávez, Putin, Orbán, Erdogan, Trump e Menem, sim, esses conseguiram. Não tinham juízes, mas agentes. Lula não conseguiu antes, não conseguirá agora. Pode minimizar riscos, mas o caminho não é o do senso comum partidário em favor de um companheiro.
Visão apressada. A pressa é amiga da ingenuidade.
Lula já nomeou companheiro no passado. Veio dele, por ironia, a pior traição. A traição que importa não foi à sua pessoa, mas ao direito constitucional. Dias Toffoli nunca prestou contas a virtudes judiciais, como coerência e decoro. Nem a virtudes intelectuais, como atenção analítica e apuro argumentativo. De onde não se podia esperar nada, veio o que veio.
Frequenta, como tantos ministros, rodas advocatícias e magistocráticas do Lago Sul. Está sempre presente nos festivais da promiscuidade. Eufemista, chama golpe militar de “movimento” e deferência à violência bolsonarista de “diálogo”. Empregou general em seu gabinete para “dialogar” com militares. Surfou a onda da Lava Jato, depois a onda contrária. Surfa qualquer onda que não lhe force romper o pacto da pusilanimidade cordial. Acumula taças do JusPorn Awards.
O STF não precisa de um novo hostess de interesses privados, empresariais e do centrão. De um ministro que negocia a Constituição pelo melhor preço. Já deu para aprender que advocacia lobista com magistocracia não fazem primavera democrática.
Escolher alguém que combine inteligência jurídica, independência e dignidade para não se deixar deslumbrar por mimos de corporações de ofício e do lobby amigo é o melhor que Lula pode fazer, o melhor seguro que pode contratar. Um tribunal diverso e representativo está mais preparado para resistir às tentações do patrimonialismo e do messianismo. E para construir boa jurisprudência constitucional.
Lula fez campanha a partir de um compromisso com igualdade, defesa da Constituição e proteção da democracia. O poder de indicar ministro do STF tem tudo a ver com igualdade, defesa da Constituição e proteção da democracia.
Confirmado o prognóstico jornalístico de nomeação de operador do direito cuja grande credencial pública foi ser remunerado para defender Lula em processo criminal, seu compromisso será com o erro crasso. Gratidão privada não casa com interesse público.
Um jurista cujo pensamento é indiscernível dos interesses de seus clientes, entre eles o próprio presidente, trará para a corte não mais que desconfiança. Também defendeu a Varig contra seus trabalhadores. Defende a Americanas contra seus credores. Oferecerá o melhor argumento antilulista ao Congresso e ao extremismo político. Ajudará a rifar, outra vez, a capacidade de o STF se mostrar imparcial e respeitável.
O fantasma da fúria lava-jatista se combate com mais clarividência, não pela reedição de equívocos passados. A confiabilidade de um ministro se mede por sua integridade, consistência e trajetória, por valores que professa e pratica, não por serviços prestados a presidente que o nomeia.
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