A tramitação do PL Antiaborto por Estupro gerou críticas à ministra da Saúde, Nísia Trindade, por sua suposta omissão na discussão sobre o tema desde que levou uma bronca do presidente Lula (PT), em março deste ano. A única manifestação da chefe da pasta sobre o projeto se deu por meio de um tuíte.
Juristas, ativistas e auxiliares de Nísia apontam, no entanto, que o silêncio é reflexo das pressões políticas exercidas sobre ela, mas também do modo discreto como a ministra tem administrado o assunto.
Ainda que sem alarde, afirmam à coluna, a primeira mulher a comandar a Saúde tem reposicionado a pasta e mobilizado discussões em prol do direito previsto em lei que não eram feitas havia mais de uma década.
Dias depois de ser empossada como ministra, Nísia revogou uma portaria e tirou de circulação um manual para profissionais da saúde publicados no governo de Jair Bolsonaro (PL). A portaria definia que vítimas de estupro tivessem seus abortos reportados à polícia, enquanto o manual censurava o procedimento após 22 semanas.
O segundo movimento público, e também o mais expressivo, ocorreu em agosto de 2023, sem ampla divulgação. Nísia se manifestou nos autos da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 989, que é relatada pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Edson Fachin e pede que o Estado assegure a realização do aborto nas hipóteses previstas em lei.
Na manifestação, a ministra apontou que a intenção de interromper a gravidez em casos de estupro, de risco à vida da mãe e de anencefalia deve ser o principal fator a ser considerado em um aborto voluntário, não o tempo de gestação ou o peso fetal. Disse, ainda, que obrigar mulheres a levarem a gravidez até o fim visando uma entrega à adoção é um tratamento “desumano” e “degradante” por parte do Estado.
Auxiliares de Nísia afirmam que o posicionamento, que abordou a questão temporal de forma inédita dentro da Saúde, está sintonizado com práticas internacionais e foi a maior contribuição da pasta para o tema em mais de dez anos —a última havia ocorrido em 2012, quando foram dados subsídios para o julgamento no Supremo que autorizou o aborto em casos de anencefalia.
O envio do ofício a Fachin ainda se deu num cenário em que a gestão de Nísia havia começado a traçar um diagnóstico sobre a situação do aborto no país e o atendimento em hospitais —trabalho que segue sendo feito. Ao longo de meses, foram ouvidos dezenas de atores da saúde, do mundo jurídico e da sociedade civil sobre o assunto.
As tratativas resultaram na produção de uma segunda nota técnica, que também seria enviada ao STF. O caso de uma mulher indígena que foi vítima de violência sexual, teve o acesso ao aborto legal negado e morreu durante o trabalho de parto no Paraná, em novembro de 2023, aqueceu o debate.
Em fevereiro deste ano, porém, a nova nota técnica vazou. O texto reiterava que o Código Penal não impõe qualquer limite temporal e dizia que não cabia aos serviços de saúde “limitar a interpretação desse direito”, especialmente “quando a própria literatura e a ciência internacional não estabelecem limite”.
O vazamento, inesperado, gerou ruídos dentro e fora do ministério. Nísia foi alertada por um ministro de Lula sobre a discussão, sinalizando que aquele não era o momento adequado para levá-la adiante. Durante uma reunião ministerial, ela foi repreendida pelo próprio presidente na frente dos demais colegas.
Diante da pressão no governo e também de parlamentares bolsonaristas, a ministra suspendeu a tramitação da nota afirmando que o documento ainda não tinha sido avaliado por “todas as esferas necessárias”. Ela ainda declarou que o vazamento buscava “criar confusão”.
O recuo alimentou o fogo amigo e críticas por parte daqueles que esperam uma atuação mais contundente do ministério. Um quadro do ministério que esteve envolvido na elaboração do documento afirma à coluna que, depois disso, a pasta parou de trabalhar na publicação de um novo manual para profissionais de saúde.
Desde então, nenhum outro guia foi colocado no lugar do que foi revogado. A falta de uma diretriz clara cria um cenário de insegurança para os profissionais de saúde e abre brechas para que cada hospital crie critérios próprios, principalmente em relação ao limite gestacional.
Há ainda a insegurança jurídica. Especialistas ouvidos pela coluna afirmam que a Saúde é frequentemente procurada por magistrados, procuradores e defensores públicos em busca de respostas sobre como atuar em casos de gravidezes avançadas. Para críticos de Nísia, a pasta estaria, portanto, sendo omissa.
Já auxiliares que atuam no gabinete da ministra lembram que, historicamente, a discussão sobre o aborto sempre foi difícil de ser tocada pelo governo—a primeira norma só foi publicada pelo ministério em 1998— e defendem que o recuo, inevitável, teve um peso maior sobre Nísia pelo fato de ela ser uma mulher.
Esses mesmos quadros do ministério afirmam ainda que o vazamento evidenciou a necessidade de o debate público sobre o aborto ser qualificado antes de um novo manual entrar em circulação.
com BIANKA VIEIRA, KARINA MATIAS e MANOELLA SMITH
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